Dona Sebastiana revelava verdades sem meias palavras
LÚCIO EMÍLIO JÚNIOR – O documentário A Filha de São Sebastião (Caturra digital), datado de 2013, focalizou Dona Tiana (Sebastiana Geralda Ribeiro da Silva), matriarca do Quilombo “Carrapatos da Tabatinga”, falecida há alguns anos (2019), na fase madura de sua trajetória. A equipe que realizou o filme era composta de Juliana Braga, Luciana Katahira, Larissa Cardoso, José Francisco Duarte e Ana Paula Ferreira de Lima. O documentário contou também com a colaboração de Sandra Maria da Silva, Gabriela Gois, bem como de toda a comunidade Carrapatos da Tabatinga. Assista ao documentário AQUI.
Em Bom Despacho existem três matrizes afro-brasileiras: Dona Fiota (já falecida) e Marquinhos Bacará com a Língua do Negro da Costa (pesquisada mais a fundo por Benício Cabral e Sônia Queiroz), a matriz de Tiana, Sandra e Graça Epifânio e a de Zé Geraldo.
Um dos indicativos de que existiu um quilombo aqui na região é a presença, bastante rara, da Língua do Negro da Costa, a chamada “língua da Tabatinga”. Anos atrás, eu, Tânia Nakamura e equipe da antiga UNIPAC (hoje grupo UNA) e colocamos Dona Tiana em contato com a Fundação Palmares, que já existia desde 1988. Foi uma sintonia maravilhosa, com a comunidade seguindo adiante com suas próprias pernas e prescindindo de nós pesquisadores e intelectuais para travar suas próprias lutas. Sandra, em especial, está organizando um museu em homenagem a Tiana, já foi candidata a deputada pelo PSOL e foi objeto de estudo de dissertações.
A Fundação Palmares parte do pressuposto de que todo lugar onde há resistência negra pode ser chamado de quilombo. Desde 2008 ela reconheceu a região da Tabatinga como um território quilombola. Uma das dissertações que enfocou a comunidade é a de Ana Carolina Oliveira Teixeira Vertelo em sua dissertação O Processo de Constituição Identitária dos Moradores do Quilombo Carrapatos da Tabatinga.
A chegada em Bom Despacho
Em 1966, convidada por Dona Elisa Queiroz, chegou em Bom Despacho no longínquo ano de 1966, em uma das antigas “jardineiras” (antigos ônibus). Ela tinha vindo fazer trabalho de assistência social e sentiu carência de eventos culturais. ou a morar aqui e montou peças teatrais e grupos de dança. Fundou o corte de reinado Moçambique de São Benedito, bem como uma escola de samba que em 1988 obteve o primeiro lugar no carnaval de Bom Despacho.
Esta mulher chamava-se Sebastiana Geralda Ribeiro da filha de São Sebastião, sincretizado na umbanda como orixá Oxóssi. Oxóssi é o grande orixá das florestas e das relações entre o reino animal e vegetal. Sebastião era um soldado que teria se alistado no exército romano por volta de 283 d.C. com a única intenção de afirmar os corações dos cristãos, enfraquecidos diante das torturas. Por volta do ano 286, a sua conduta branda para com os prisioneiros levou o imperador a julgá-lo sumariamente como traidor, tendo ordenado a sua execução por meio de flechas, que se tornaram símbolo constante na sua iconografia.
Dona Sebastiana recebeu o seu nome em homenagem ao guerreiro mártir, foi batizada pelos seus avós como filha de Oxóssi. Ela era também capitã da guarda de Moçambique, posto que, segundo ela, era apenas ocupado por homens. Dona Sebastiana era mãe-de-santo, revelava verdades sem meias palavras. A fé e a terra eram fontes de força para o dia-a-dia da sua comunidade, que hoje ainda vive com poucos recursos financeiros.
Sua primeira atitude foi construir a casa para abrigar seu santo de proteção: São Sebastião, ou Oxóssi, senhor das matas. Dona Tiana alegou que precisou ir até o bispo em Belo Horizonte para poder participar da festa de Reinado local da Igreja Católica (tudo indica, motivado pelo fato de que ela fundou o seu próprio centro espírita de orientação afro), conforme ela alegou em seu depoimento no documentário. Quem teria enfim revertido a situação teria sido Dom Serafim Fernandes de Araújo, que finalmente deu a autorização para que ela pudesse rezar onde queria. A ideia do documentário foi recolher histórias como essa e mostrar a cultura do povo de Tiana através da luta política e assistência social, além da religião, canto e dança.
O filme mostrou como Dona Sebastiana aprendeu e criou táticas de sobrevivência para enfrentar a sociedade à sua volta. Ela apresentava-se como líder de comportamento polêmico. Tratava-se do equilíbrio entre alegria, angústia e lutas constantes. Tiana definiu-se como “nêga véia de senzala”. Era uma alma plural, múltipla, que representava um universo curioso de sabedoria. O filme marcou ao mostrar, com bela fotografia, as danças, cantigas, rezas, bençãos, entre tantos outros elementos da cultura popular afro-brasileira.
A figura desta mulher inspirou o equilíbrio entre a fé nos milagres, bem como a triste luta da vida sem esperar por eles. O dilema entre a sabedoria dos santos e a realidade de nunca ter tido a oportunidade de aprender a ler e escrever, retomando aquele debate de Dona Fiota no documentário Eu Tenho a Palavra: Tiana tinha a palavra, o belo discurso e o conhecimento da tradição, mas não tinha o domínio da cultura letrada. (Portal iBOM / Lúcio Emílio Júnior é filósofo, professor e escritor).